De como uma coisa leva a outra

Sob o rochedo, recolhemos uma corda: cabresto de carneiro que, todos os anos, na mesma época, é sacrificado aos jacarés, de que, dizem os guias, o poço está cheio. A descoberta deste pedaço de corda me enche de alegria, pois começo a entrever o que há de apaixonante na pesquisa científica: ir de elemento de prova a elemento de prova, de enigma a enigma, perseguir a verdade como a uma pista… (Leiris, Michel. A África fantasma.p.105)
Com quem aprenderam os músicos que compunham e executavam músicas tão importantes nos séculos XVIII e XIX em Ouro Preto? Mas uma pergunta não basta para um achado. A pergunta acordou um desejo de sistematizar, formalizar minimamente um gosto e uma intuição. O pesquisador sabe que a resposta não é dada à entrada. A resposta é uma busca incessante, apaixonante, descobrindo que o objeto escapa, mas aparece outro, e esse outro torna-se o seu objeto. Objeto de paixão quase erótica! Você dorme e acorda pensando nele. Carlo Ginzburg chamou a atenção dos historiadores para a importância de sinais aparentemente sem importância em Sinais: raízes de um paradigma indiciário. Investigar os indícios, o, que fazem os investigadores, policiais ou acadêmicos.
O que seria afinal um método de investigação? As perguntas deram início a um trabalho de remissões que continua – e continuará, pelo que percebo – interminável, e inconcluso. A abertura de links não é uma invenção do ciberespaço (mesmo que o nome o seja) é antiga e pode, bem sabemos, não ter fim. Afinal, é de investigar ou pesquisar que falamos? Analogicamente, as palavras remetem a: curiosidade; desejo de saber; atenção, diligência, cuidado; experimento, tentativa; distinção, discernir. Curiosidade, desejo de saber – procura, busca da ciência, da verdade, indiscrição; curioso, investigador, espião, inquisidor; avidez de saber! Mas humildade ao não encontrar o objeto desejado. Certamente foi aberto outro caminho, a partir daquele que você julgou perdido.
Comigo, aconteceu! Um dia, quando em torno do meio dia estava no Arquivo Público Mineiro, em meio a pastas que pudessem me dar pistas para achar como os musicos aprendiam, de eu ficar extraordinariamente surpresa com cartas de uma senhorita que morou em Ouro Preto no século XIX. Fiquei ávida! Assim foi a aparição de Constança Guimarães a mim. Não foi a outrem que se exibiu. Uma exibição discreta, pudica: apenas oito cartas e um retrato em que se faz tímida. Esse encontro impunha-me deveres: Escutar os mortos com os olhos, como disse Quevedo, ou acalmar os mortos que ainda frequentam o presente e oferecer-lhes túmulos escriturários, como disse Certeau. Desde então sou responsável por ela. Sua ausência impunha-me perguntas. Quem teria sido? Onde e como viveu?
O Arquivo guardou um documento aparentemente banal. Não é uma copiosa correspondência, não há as cartas das primas para ela, nem de outras pessoas, fossem da família ou não. O que há é Constança, cuja ausência foi tão sentida, que Sinhoca, sua missivista preferida, fez dela uma presença para durar.
No jornal encontrei a notícia triste de sua morte. De que terá morrido? Ávida, comecei a leitura das cartas enquanto admiração e lágrimas iam desfeiteando meu rosto. Não acreditam ? Leiam as cartas.
A busca me levou ao perfil inicial: Constância Guimarães 1871-1887. Filha do escritor mineiro Bernardo Guimarães e Teresa Maria Gomes Guimarães, prima e noiva do poeta Alphonsus Guimarães. Faleceu de tuberculose em Ouro Preto.
Nada nas cartas me autorizava a dizer que o primo, que se tornaria uma grande poeta, era seu noivo, que lamentou e ouviu a pergunta: Por que não vieram juntos ? Também aprendi com as cartas que seu nome era Constança, como o de sua avó paterna.
Em janeiro o jornal anunciou sua morte ocorrida no dia 29 de dezembro do ano anterior – 1888. Ela havia feito 17 anos em novembro. Não chegou a degustar as jabuticabas da região.
Eliane Marta Teixeira Lopes
Professora Emérita da UFMG
Organizadora da obra Cartas – Constança Guimarães (1871-1888)
https://quixote-do.com.br/produto/cartas-constanca-guimaraes-1871-1888/